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10/07/2023
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Foto: Pixel-Shot / Adobe Stock

Ciclo de agressões

Mulheres vítimas de violência denunciam seus agressores, mas ainda sentem falta de apoio, inclusive das igrejas

Por Ana Cleide Pacheco

Somente em 2022, pelo menos 18 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência no país. É o que revela a 4ª edição do estudo Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma organização não governamental, apartidária e sem fins lucrativos de pesquisa e cooperação técnica na área da segurança pública. Em comparação com a edição anterior, que reuniu dados de 2021, o número de vítimas aumentou 4,5%: antes representava 24,4% da população feminina brasileira; agora, esse percentual é de 28,9%. Ainda de acordo com o levantamento, as acometidas pelo crime sofreram, em média, quatro agressões ao longo do ano. Entre os tipos de violência listados, estão: ofensas verbais (23,1%), perseguição (13,5%), ameaças de violência física (12,4%) e ofensas sexuais (9%).

A advogada Marilha Boldt, 38 anos, idealizadora da ONG Superação da Violência Doméstica, acredita que não é possível saber se houve, de fato, um aumento no número de casos, ou se as mulheres estão mais conscientes e, portanto, estão procurando ajuda das autoridades a fim de romper o ciclo da agressão. “Em minha opinião, elas têm compreendido melhor, pois buscam apoio e denunciam.”

A advogada Marilha Boldt acredita que não é possível saber se houve, de fato, um aumento no número de casos: “Em minha opinião, elas têm compreendido melhor, pois buscam apoio e denunciam”
Foto: Arquivo pessoal

Por outro lado, Boldt acredita que esse movimento por parte das vítimas gerou um efeito rebote: na medida em que os homens percebem que elas não estão mais se calando, tornam-se ainda mais agressivos a fim de silenciá-las. “Não existem estudos científicos que mostrem isso, mas é perceptível. Precisamos orientar aquelas que sofrem, oferecendo-lhes serviços que deem condições psicológicas para que consigam romper o ciclo do relacionamento abusivo.”

Segundo a advogada, os números da pesquisa da FBSP podem até estar subestimados. No caso da violência sexual, por exemplo, algumas ofensas passam longe do radar das autoridades. “Um beijo não consentido também deveria constar na estatística”, assinala Marilha, uma ex-vítima de violência doméstica. Quando vivi a violência doméstica, não tive apoio institucional. Ninguém sabia me explicar o que era violência doméstica, fui aprendendo aos poucos e sozinha, não tinha referência de alguém que tinha vivido, e esse sentimento de ir tateando e aprendendo eu não queria que outras mulheres vivessem, queria que elas pudessem saber que é possível superar, que isso não limitaria o seu futuro, relata no site de sua associação.

A advogada Karina Rosa Bragança lembra que as vítimas, para conseguirem se afastar do agressor, precisam contar com o auxílio de profissionais especializados, como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais
Foto: Arquivo pessoal

A também advogada Karina Rosa Bragança, 25 anos, voluntária do Projeto Jurujuba – fundado em 1998 para ajudar no desenvolvimento da vila de pescadores local, em Niterói (RJ) –, acredita que o número de denúncias tem aumentado, e não apenas a quantidade de casos. “A criação de serviços especializados, como os centros de referência de atendimento à mulher, tem contribuído para que as vítimas se sintam mais encorajadas a denunciar.” Ela lembra que, para conseguirem se afastar do agressor, muitas precisam contar com o auxílio de profissionais especializados, como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. “É fundamental que a sociedade continue se mobilizando e debatendo sobre o tema, para que possamos construir um país mais justo e igualitário.”

A Pra. Elane Felisbino Ferreira Marins ressalta: “Damos mais ênfase às dores físicas, mas existem outras formas de agressão, como psicológica, moral, sexual e patrimonial”
Foto: Arquivo pessoal

Por sua vez, a Pra. Elane Felisbino Ferreira Marins, 51 anos, da Primeira Igreja Batista em Figueira, Nova Iguaçu (RJ), na Baixada Fluminense, adverte que a maioria dos casos de violência contra a mulher ocorre no ambiente doméstico. “Damos mais ênfase às dores físicas, mas existem outras formas de agressão, como psicológica, moral, sexual e patrimonial”, ressalta a líder, destacando que todas elas estão previstas na Lei Maria da Penha. “Nenhuma delas [violências] deve ser minimizada, pois são práticas nocivas e inaceitáveis, com consequências gravíssimas.”

Decisão difícil A microempresária I. O. S., 53 anos, convive há duas décadas com diversos tipos de abusos, com exceção da violência física. De acordo com ela, escutar algo ofensivo dói tanto quanto um tapa, porque deixa marcas na alma. “A agressão verbal é igual a uma pancada, pois gera dor, tira o estímulo de viver e a confiança. Quando se vive isso, perdemos a dignidade aos poucos, pois ouvir palavras depreciativas relacionadas à aparência é um ataque ao nosso estado emocional.”

Para a entrevistada, além de humilhar, os insultos geram nela a culpa por permanecer em tal união. Evangélica, a mulher diz se sentir envergonhada por não conseguir sair da situação. “Eu me pergunto: ‘Para onde vou? Como vou me sustentar? Será que não tem jeito mesmo ou ainda há esperança?’. São muitas questões envolvidas, e não é uma decisão fácil. Penso que, como serva do Senhor, tudo pode ser transformado se eu mostrar o meu valor: primeiro, para mim, e, depois, para o meu marido. Tenho buscado isso em Deus e nos aconselhamentos pastorais”, desabafa.

Quem está de fora geralmente critica e julga quem está vivendo o problema pela inércia. Porém, há muitos fatores intrincados nos relacionamentos abusivos, os quais dificultam o rompimento do ciclo da violência. Em geral, as repetidas agressões são capazes de fragilizar a pessoa, fazendo com que ela crie, sem perceber, uma dependência emocional com o abusador. “A vítima de violência fica adoecida, mas não sabe, porque sua percepção da realidade está distorcida. Assim, ela passa a se sentir impotente e sem forças para reagir”, afirma a policial civil aposentada Cátia Regina Dantas de Brito, 58 anos, que atuou por três décadas na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), no Rio de Janeiro (RJ).

A policial civil aposentada Cátia Regina Dantas de Brito lembra: “A vítima de violência fica adoecida, mas não sabe, porque sua percepção da realidade está distorcida. Assim, ela passa a se sentir impotente e sem forças para reagir”
Foto: Arquivo pessoal

De acordo com Cátia Brito, o agressor procura afastar quem poderia ajudar a vítima, como parentes e amigos. Além disso, impõe dificuldades financeiras, estimulando, dessa forma, o medo. “Vale ressaltar que, diferentemente de todas as relações entre vítima e agressor, nessa existe o vínculo afetivo, ou seja, aquele é o homem por quem se apaixonou, tem filhos e vive toda a complexidade de uma família”, salienta a ex-agente e membro da sede estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) no Rio de Janeiro.

Cátia destaca que o ciclo da violência doméstica inicia-se no ambiente familiar. Primeiro, ocorre uma evolução da tensão, quando há agressões verbais, constrangimentos, humilhações, xingamentos e outras formas de ataque moral. Em seguida, há uma escalada dessas agressões e acontece a violência física. Depois disso, vem a fase de lua de mel, quando o homem se diz arrependido, pede perdão e é anistiado pela vítima. Por algum tempo, o ciclo é interrompido, e a mulher acredita que tudo mudou, mas isso acontece apenas por um período curto, até que tudo recomeça da mesma maneira. Trata-se de um processo no qual as etapas se sucedem indefinidamente, até que haja a denúncia, e o agressor seja punido. Mas, para denunciar, a vítima precisará de informação e do apoio de amigos e familiares. “Ela terá altos e baixos. Um dia estará muito decidida a romper, e, em outros, inclinada a desistir de reagir. Se não existir um suporte, ela não conseguirá prosseguir.”

A pesquisadora Roseli da Cruz Dias acredita que a Igreja tem um papel importante no apoio às vítimas de violência doméstica: “Podemos apoiar mulheres com uma assistência social contínua dentro de nossas igrejas”
Foto: Arquivo pessoal

“Ajuda mútua” – A pesquisadora Roseli da Cruz Dias, 64 anos, especialista em História de Israel, acredita que a Igreja tem um papel importante no apoio às vítimas de violência doméstica. “Podemos apoiar mulheres com uma assistência social contínua dentro de nossas igrejas.” Para a profissional, as servas de Cristo devem entender que, em um relacionamento, a submissão é uma via de mão dupla, na qual elas, ajudadoras virtuosas, devem ser respeitadas em sua integridade física, emocional e psicológica. Roseli Dias defende que a mulher deve participar do processo de construção da união conjugal e da família, opinando, ouvindo seu parceiro e sendo ouvida por ele. “Ela tem poder de decisão também por meio do diálogo”, afirma Dias, membro da Primeira Igreja Batista de Agostinho Porto, em São João de Meriti (RJ), na Baixada Fluminense.

A Pra. Thaís Benevente lembra que, muitas vezes, os agressores vêm de criações abusivas e negligentes: “Por isso, há a necessidade de as igrejas ajudarem a construir lares saudáveis”
Foto: Arquivo pessoal

A Pra. Thaís Benevente, 38 anos, da IIGD em Jundiaí (SP) e líder do Mulheres que Vencem (MQV) no estado de São Paulo, destaca também o papel fundamental da Igreja na pregação da Palavra como ferramenta para romper o ciclo da violência doméstica. “Se não cuidarmos disso no início, esse ciclo nunca terá fim”, alerta a ministra, lembrando que, muitas vezes, os agressores vêm de criações abusivas e negligentes. “Por isso, há a necessidade de as igrejas ajudarem a construir lares saudáveis.”

Em contrapartida, Benevente recorda que as comunidades cristãs não podem deixar de apoiar as vítimas de violência. “Nas reuniões do MQV, elas conseguem entender a força que têm e quem são em Cristo, e o Espírito Santo faz o restante. Assim, compreendem que não precisam de migalhas de atenção ou de depender emocional e financeiramente de ninguém. Afinal, sabemos em quem temos crido”, afirma a pastora, fazendo referência ao texto de 2 Timóteo 1.12.

A Pra. Dione Carvalho do Nascimento Ferreira ressalta: “Vejo que, hoje, muitas igrejas promovem programas de ajuda mútua emocional, que têm contribuído bastante nessa questão”
Foto: Arquivo pessoal

A Pra. Dione Carvalho do Nascimento Ferreira, 47 anos, da Primeira Igreja Batista em Santa Amélia, em Belford Roxo (RJ), na Baixada Fluminense, concorda que as igrejas precisam participar ativamente do processo de conscientização das mulheres. “Vejo que, hoje, muitas igrejas promovem programas de ajuda mútua emocional, que têm contribuído bastante nessa questão. Eu mesma já coordenei alguns”, ressalta a pregadora, que também é psicanalista clínica. Para ela, muito ainda precisa ser feito nessa área. “Há uma necessidade de o Corpo de Cristo trabalhar mais, com um olhar meticuloso acerca da violência; pois, isso não afeta somente as mulheres, mas também as famílias e a sociedade como um todo. Por essa razão, todos precisam ser assistidos”, conclui.

Foto: Davide Angelini / Adobe Stock

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