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Foto: Joe Shields / Unsplash

O cérebro e a fé

Estudo revela como é a mente de quem crê em Deus

Por Ana Cleide Pacheco

Há muitos anos, o homem tenta explicar a origem da fé em Deus. Ainda no século 13, um dos maiores filósofos do cristianismo, Tomás de Aquino (1225-1276), justificava assim a razão de sua crença no Altíssimo: Existe algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus. Já no século 17, o grande matemático britânico Isaac Newton (1643-1727) assim resumiu a questão: Amar a Deus é uma atração que o coração não entende, simplesmente sente

O matemático britânico Isaac Newton (1643-1727): Amar a Deus é uma atração que o coração 
não entende, simplesmente sente – Foto: Wikimedia

Por sua vez, o filósofo e psicólogo norte-americano William James (1842-1910) tentou descrever o que existe de comum na experiência religiosa das pessoas, independentemente do credo professado. Concluiu que a fé não pode ser descrita com palavras, pois se trata de uma experiência altamente subjetiva: A religião deve significar para nós os sentimentos, ações e experiências do homem, individualmente, em sua solidão, descreveu. Já o psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) sustentava que a experiência religiosa expressa o que está na base do que chamou de inconsciente coletivo – uma espécie de repertório de informações e impressões herdadas dos ancestrais. Segundo Jung, a religiosidade não depende da escolha consciente de uma religião, e sim é algo que pertence à humanidade.

 O psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) sustentava que a experiência religiosa expressa o que está na base do inconsciente coletivo – o qual é uma espécie de repertório de informações e impressões herdadas dos ancestrais – Foto: Wikimedia

Nos dias atuais, porém, a ciência tem procurado razões menos filosóficas para desvendar a necessidade e até a capacidade humana de crer no divino. Uma dessas tentativas é uma pesquisa realizada por neurocientistas da Universidade de Georgetown, em Washington, capital dos Estados Unidos. Publicado em novembro pela revista científica Nature, o estudo sugere que a crença na existência de Deus é intrínseca a algumas pessoas e tem relação com a forma como elas apreendem a realidade à sua volta. A sondagem concluiu o seguinte: indivíduos que conseguem perceber padrões complexos no mundo – ainda que de maneira inconsciente – tendem a ter crenças mais fortes de que Deus existe e foi quem criou os padrões de eventos do universo. 

O filósofo e psicólogo norte-americano William James (1842-1910): A religião deve significar para nós os sentimentos, ações e experiências do homem,  individualmente, em sua solidão – Foto: Reprodução
Universidade de Georgetown, em Washington, capital dos EUA, onde foi realizada a pesquisa, depois publicada na revista Nature – Foto: Reprodução

Participaram da pesquisa 348 pessoas – 199 cristãos, residentes em Washington, e 149 muçulmanos, habitantes de Cabul, no Afeganistão. Os cientistas escolheram países que diferem substancialmente do ponto de vista cultural e religioso a fim de demonstrar que o padrão se repete, independentemente do sistema de crenças e da cultura. Os voluntários foram submetidos a um teste cognitivo bastante conhecido no meio acadêmico, o qual mede o chamado padrão de aprendizagem implícito. Durante a atividade, os participantes assistiram à apresentação de uma sequência de pontos que apareciam e desapareciam rapidamente na tela do computador. Para cada um deles, deveriam apertar um botão. 

Os que demonstraram maior capacidade de aprendizagem implícita foram aqueles que conseguiram captar padrões ocultos na sequência, de forma inconsciente, pressionando o botão correspondente ao próximo ponto da sequência antes mesmo que este aparecesse. Esses indivíduos, segundo os pesquisadores, tendem a sustentar uma crença mais forte na existência de um ser superior. Crer em um deus ou em deuses que intervêm no mundo para criar ordem está no cerne das religiões globais. Este não é um estudo a respeito da existência de Deus, mas sobre as razões e a forma como o cérebro passa a acreditar nEle. Nossa hipótese é que as pessoas cujos cérebros são bons em discernir padrões de forma subconsciente no ambiente em que vivem podem atribuir esses padrões a um poder superior, informou Adam Green, um dos responsáveis pela investigação.

Também foi concluído que esse processo de aprendizagem se inicia na infância. Uma criança que tem alta capacidade de captar padrões de forma inconsciente em seu ambiente será mais propensa a desenvolver a capacidade de crer em Deus, à medida que cresce. E isso ocorre mesmo que sua família não seja religiosa. Por outro lado, se o pequeno não capta padrões ao seu redor, ainda que seja criado dentro de uma determinada religião, sua crença em uma ou mais divindades tende a diminuir com o passar do tempo.

“Padrão recorrente” – O psicólogo e pesquisador na área da Ciência Cognitiva da Religião Bruno Mori Porreca, 32 anos, considera a sondagem bastante interessante, uma vez que busca estudar padrões de percepção visual e de orientação no tempo e no espaço. Segundo ele, é usado o método conhecido como bottom-up, algo que se forma de baixo para cima, a partir das experiências primárias. Em outras palavras: aquilo que o indivíduo experimentou desde a mais tenra infância e que foi se consolidando ao longo de sua vida. “Todos temos uma forma de interpretar o mundo, e o que a análise tentou observar é se existia algum tipo de padrão recorrente entre pessoas de crenças e tradições religiosas diferentes”, destaca ele, membro da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba (PR) e integrante da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).

O psicólogo Bruno Mori Porreca afirma: “Todos temos uma forma de interpretar o mundo, e o que a análise tentou observar é se existia algum tipo de padrão recorrente entre pessoas de crenças e tradições religiosas diferentes” – Foto: Arquivo pessoal

Já o físico Roberto Covolan, pesquisador das áreas de Neurociência e Neurotecnologia, lembra que Deus intervém e é o gerador da ordem que se vê estabelecida no Universo. Indagado sobre a descoberta norte-americana, Covolan declarou que “do ponto de vista de quem crê, ela pode parecer positiva, porém é mais do que isso: é surpreendente!”. O pesquisador, que é vice-presidente da ABC2, salienta que os cientistas, em geral, supostamente têm uma capacidade altamente desenvolvida de perceber padrões. Contudo, o que torna a investigação ainda mais interessante, em sua opinião, é ela ter buscado isso entre indivíduos ditos “comuns”. “Dessa forma, um ponto que merece destaque é a ideia de que eles encontraram uma correlação entre a capacidade dessas pessoas de aprenderem padrões de modo inconsciente e crerem em Deus”, ressalta o cientista, membro da Igreja Batista Fonte, em Campinas (SP).

Roberto Covolan: “Um ponto que merece destaque é a ideia de que eles encontraram uma correlação entre a capacidade dessas pessoas de aprenderem padrões de modo inconsciente e crerem em Deus” – Foto: Arquivo pessoal

Certo ceticismo – O pastor e psicólogo Anderson Nunes Pinto, 46 anos, concorda que a crença em Deus se deve a processos subjetivos, em grande parte inconscientes. “Cremos, mesmo sem saber porque cremos. Quando começamos a pensar nas razões para crer, é nossa parte consciente que está trabalhando. Isso é coerente com o que as ciências humanas e sociais têm dito sobre o fenômeno religioso”, pondera o especialista, acentuando que, quando se fala a respeito da crença no Senhor, não se está tratando de provar a existência dEle, tampouco se está dizendo que o Altíssimo é o mesmo para todas as pessoas. “Nesse sentido, a pesquisa nada prova – até porque essa não era a sua proposta. O objetivo era observar a correlação entre o cérebro e as experiências religiosas das pessoas. E isso foi feito”, pondera ele, pastor da Igreja Batista da Posse, em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ).

O pastor e psicólogo Anderson Nunes Pinto pondera: “Quando começamos a pensar nas razões para crer, é nossa parte consciente que está trabalhando. Isso é coerente com o que as ciências humanas e sociais têm dito sobre o fenômeno religioso” – Foto: Arquivo pessoal

O Prof. Humberto Schubert Coelho, 38 anos, do programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), vê o resultado do estudo norte-americano com certo ceticismo. Segundo ele, é possível que crenças e pensamentos estejam ligados a alguma função cerebral, embora as investigações que pretendem comprovar, de forma sólida, essas correlações ainda sejam precárias e incipientes. 

Em sua opinião, os cientistas norte-americanos tentaram atestar algo que, para além da capacidade da observação científica, envolve aspectos que carecem da participação da filosofia em sua análise. “A ciência trata de como as coisas são e funcionam, e a filosofia trata de interpretar, no quadro geral da realidade, onde os dados e apontamentos científicos se encaixam, qual a sua relação com a arte, a política, a religião, a vida psicológica”, esclarece. 

O Prof. Humberto Schubert Coelho: “A ciência trata de como as coisas são e funcionam, e a filosofia trata de interpretar, no quadro geral da realidade, onde os dados e apontamentos científicos se encaixam” – Foto: Arquivo pessoal

Segundo ele, quando os cientistas norte-americanos afirmam que determinado fenômeno mental é produzido apenas pela atividade cerebral, estão excluindo a interpretação filosófica sobre essa ocorrência. Em sua opinião, essa seria uma atitude precipitada neste momento, pois pouco se sabe até hoje sobre a correlação entre o funcionamento do cérebro e os estados mentais. “Entendo que estamos indo na direção de estudos evolutivos e neurocientíficos em todas as áreas. Mas, pelo que se sabe atualmente sobre o cérebro, não se têm evidências, e sim apenas tênues correlações entre a fisiologia cerebral e os estados subjetivos e psicológicos. Então, temos um longo caminho a percorrer.”

Fenômenos da espiritualidade – Já o psiquiatra Orlando Luiz Krieger reforça que a atividade mental é produto da interação do cérebro com o meio ambiente, já que as experiências mentais são também cerebrais. “Não existe mente sem cérebro. E sendo Deus vívido na mente, é preciso que ocorram conexões de sinapses [contato entre neurônios] que processem a existência dEle no cérebro. Diante disso, esse e outros estudos mostram que espiritualidade e religiosidade são processadas em áreas cerebrais específicas”, defende. 

O psiquiatra Orlando Luiz Krieger reforça: “Não existe mente sem cérebro. E sendo Deus vívido na mente, é preciso que ocorram conexões de sinapses que processem a existência dEle no cérebro” – Rodrigo Di Castro

No entanto, Krieger indicou também um pouco de ceticismo com relação à descoberta dos cientistas norte-americanos. “Identificar padrões não quer dizer crer em Deus, e sim simplesmente constatar que eles existem. Foi isso que o estudo fez. O Criador criou os padrões para os que creem. Então, para o incrédulo e o ateu isso não prova nada. Mas, de fato, há pessoas mais dispostas às experiências religiosas que outras”, defende.

O Pr. Paulo Roberto Freitas Albuquerque, 56 anos, psicólogo especialista em Neurociências, lembra que tem sido recorrente o aparecimento de investigações a respeito da existência de uma correlação entre o funcionamento cerebral e os fenômenos da consciência ligados à espiritualidade. Um exemplo seria a proposição de um gene de Deus, conforme postula o geneticista norte-americano Dean Hamer, para quem a fé religiosa não é simplesmente uma escolha pessoal: trata-se de um dado na genética humana. 

O pastor e psicólogo Paulo Roberto Freitas Albuquerque: “Penso que o diálogo com as neurociências é um campo desafiador e deve ser provocado nos contextos teológicos” – Foto: Arquivo pessoal

De acordo com Albuquerque, diante de tantos achados científicos, surgem algumas perguntas: O que veio primeiro: o cérebro humano, criando a espiritualidade e a fé em um deus; ou Deus, conforme a tradição judaico-cristã, criando o homem portador dessa maquinaria cerebral capaz de percebê-lo? “Essas não são questões simples de responder. Porém, na tradição judaico-cristã, o Senhor é dado como posto, ou seja, Deus é. A Bíblia Sagrada parte desse pressuposto de que Ele existe desde sempre, e não há em suas páginas nenhuma preocupação com ciências ou provar algo contrário a essa verdade”, afirma o pastor, o qual está à frente da Igreja Batista Memorial de Duque de Caxias (RJ). 

Entretanto, Paulo Albuquerque exalta o diálogo entre a ciência e a teologia e dá boas-vindas a ele. “Os grandes avanços das neurociências, a profusão de pesquisas desde a década de 1990 e o uso de imagens nas investigações relacionadas ao cérebro certamente trarão mais luz sobre essa questão. Penso que o diálogo com as neurociências é um campo desafiador e deve ser provocado nos contextos teológicos”, conclui. 


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