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01/12/2020
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Foto: Gift Habeshaw / Unsplash

Raízes históricas

A luta do Corpo de Cristo contra a discriminação racial, ainda presente na sociedade brasileira

Por Patrícia Scott

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, no dia 13 de maio de 1888. Também foi o que mais recebeu vítimas do tráfico negreiro em toda a História: quase 5 milhões de pessoas chegaram aqui escravizadas – sem contar as que morreram nas longas viagens marítimas, realizadas em condições sub-humanas. Ao longo de mais de três séculos, navios portugueses, ou brasileiros, embarcaram indivíduos escravizados em quase 90 portos africanos, fazendo mais de 11,4 mil viagens negreiras. Dessas, 9,2 mil tiveram como destino o território brasileiro. Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Maranhão foram os estados que mais receberam escravos. Os números são do Trans-Atlantic Slave Trade Database (Banco de Dados Transatlântico de Comércio de Escravos), coordenado por pesquisadores da Universidade Emory, no estado norte-americano da Georgia. Desde 2013, eles vêm catalogando dados sobre o tráfico de escravos. Considerados mercadorias, eles tinham sua entrada e saída dos portos registrada, porque incidiam impostos sobre essas transações comerciais.

Hoje, o Brasil contabiliza a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria, com aproximadamente 85 milhões de habitantes, é a única nação do mundo com um contingente populacional de negros maior que o do nosso país. Isso significa que os pretos estão presentes nos mais diferentes contextos sociais e institucionais brasileiros. Apesar disso, e mesmo com toda a miscigenação característica de nosso povo, ter a pele escura ainda faz com que muita gente seja vítima de preconceito.

Nos últimos meses, dois episódios envolvendo pastores ganharam ampla repercussão nas redes sociais. Em uma transmissão ao vivo, no Instagram, o Pr. Rodrigo dos Santos afirmou que conheceu sua esposa em um culto em Vila Pioneira, bairro pobre de Toledo (PR). O líder declarou que teria ficado surpreso ao encontrá-la ali, uma vez que se tratava de um ambiente com fiéis encardidos, mais moreninhos e meio sujos. Diante da repercussão do caso, ele gravou outro vídeo com um pedido de desculpas: Não era minha intenção magoar ou ofender alguém e, de forma alguma, ser racista. Mas agi com palavras infantis e estou aqui para reconhecer e repugnar as minhas palavras. Peço perdão a todas as pessoas que tenha ofendido, em especial à comunidade negra.

Em Jacobina (BA), uma estudante negra, de 15 anos, acusou um pastor de tê-la impedido de participar da cerimônia de batismo por causa de seu cabelo volumoso, estilo black power. O líder, que negou o ocorrido, teria dito: Não vai ser batizada se não mudar o cabelo. A adolescente preferiu deixar a igreja e filiar-se à outra congregação, onde foi batizada nas águas. “Cabelo black faz parte da estética negra. Impor um alisamento é uma atitude racista”, opina o Pr. Ras André Guimarães, da Igreja Metodista Filadélfia e participante do Movimento Evangélico Negro, em Salvador (BA).

O Pr. Ras André Guimarães, da Igreja Metodista Filadélfia, em Salvador (BA), diz: “Cabelo black faz parte da estética negra. Impor um alisamento é uma atitude racista” Foto: Arquivo pessoal

Guimarães pondera que o racismo é alimentado por um pensamento teológico, elaborado durante a formação do sistema econômico escravista, legitimando a tese errônea de que as populações africanas são herdeiras do pecado de Caim ou da maldição de Noé sobre seu filho Cam. “Muitas pessoas desinformadas associam o povo preto à inferioridade e subalternização.” O pastor informa que existe outra falácia, que leva ao preconceito racial, de que a África seria um continente de feiticeiros, e lembra que um dos maiores segmentos cristãos do mundo é a Igreja Cristã Ortodoxa, presente no Egito e na Etiópia. “Ela foi fundamental para a propagação do cristianismo copta [egípcio] até mesmo na Europa.”

Sem distinções – A Pra. Maria Marta Ramos Pinto, líder regional da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Itapecerica da Serra (SP), revela que, certa ocasião, foi convidada para pregar em uma igreja. Contudo, quando o pastor que a tinha chamado comunicou isso a seu líder, foi informado de que deveria desfazer o convite. “Ele alegou que os brancos predominavam na região e que, como sou negra, provavelmente seria rejeitada.”

A Pra. Maria Marta Ramos Pinto: “Essa prática está presente em todos os lugares, inclusive na igreja. Acontecem piadas e brincadeiras que geram marcas em quem é agredido” Foto: Divulgação / Welton Matos

Na opinião da pastora, as igrejas ainda têm dificuldades para lidar com o assunto, porque muitos líderes acreditam que não existe racismo eclesiástico. “Mas essa prática está presente em todos os lugares, inclusive na igreja. Acontecem piadas e brincadeiras que geram marcas em quem é agredido”, destaca. Ela assinala que as lideranças precisam falar abertamente sobre o tema, mostrando que Deus condena essa atitude. “Uma pessoa não nasce racista; aprende a ser”, esclarece.

Foto: Thiago Barletta / Unsplash

A Profª Lidice Meyer Pinto Ribeiro, pós-doutora em Antropologia e História, lembra que o racismo não encontra respaldo na Bíblia e destaca que diversos israelitas viveram por anos na África. A especialista cita ainda a relevante participação de negros em momentos significativos da história bíblica. [Leia o quadro Desde a Antiguidade no final da reportagem] “Quando Jesus estava no Calvário, quem o ajudou a carregar a cruz foi um africano: Simão, o cirineu [Mt 27.32].” Lidice Meyer acrescenta que, no Novo Testamento, é evidente a importância dada por Deus à evangelização dos povos africanos, ao enviar Filipe especialmente ao encontro do eunuco da rainha etíope, Candace (At 8.26-39). “Assim, toda a Etiópia seria evangelizada ainda no século 1. Em Cristo, não pode haver espaço para distinções”, assegura Lidice, lembrando que um dos profetas e mestres na Igreja de Antioquia era Simeão, um negro. “Ele é um dos que impõe as mãos sobre Paulo e Barnabé, enviando-os como missionários ao mundo conhecido”, recorda a docente, referindo-se ao texto de Atos 13.1-3: Na igreja que estava em Antioquia havia alguns profetas e doutores, a saber: Barnabé, e Simeão, chamado Níger, e Lúcio, cireneu, e Manaém, que fora criado com Herodes, o tetrarca, e Saulo. E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, jejuando, e orando, e pondo sobre eles as mãos, os despediram.

A Profª Lidice Meyer Pinto Ribeiro lembra a relevante participação de negros na história bíblica: “Quando Jesus estava no Calvário, quem o ajudou a carregar a cruz foi um africano: Simão, o cirineu [Mt 27.32]” Foto: Arquivo pessoal

“Semelhança de Deus” – Na opinião da educadora popular Elizabeth Guimarães, integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, as igrejas no Brasil caminham lentamente para erradicar o racismo no universo cristão. De acordo com ela, é urgente reconhecer que esse preconceito faz parte dos alicerces da sociedade brasileira, estendendo-se às igrejas. “É importante admitir a história, a estrutura social do Brasil e como chegamos até aqui”, observa.

A educadora popular Elizabeth Guimarães diz que é urgente reconhecer que o racismo faz parte dos alicerces da sociedade brasileira, estendendo-se às igrejas Foto: Arquivo pessoal

A pedagoga Juliana de Souza Mavoungou Yade, doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará e ligada à Pastoral de Combate ao Racismo, da Igreja Metodista no Brasil, reforça que a discriminação com base na cor da pele é inadmissível do ponto de vista do Evangelho. “O racismo fragiliza pessoas que foram feitas à imagem e semelhança de Deus, o que as impede de desfrutar de uma vida abundante”, comenta Yade, pontuando que a ligação do homem com o Criador passa pela convivência com o próximo. “Não podemos dizer que amamos a Deus, a quem não vemos, se não amamos as pessoas [1 Jo 4.20]. E é amar de modo a me preocupar, entender e ajudar o outro a carregar a sua dor.”

A pedagoga Juliana de Souza Mavoungou Yade alerta: “O racismo fragiliza pessoas que foram feitas à imagem e semelhança de Deus, o que as impede de desfrutar de uma vida abundante” Foto: Divulgação / Patricia Stavis

O teólogo Tiago Batista dos Santos, especialista em Antigo Testamento, concorda com Juliana Yade, ao lembrar que, caso alguém se considere superior em razão da cor de sua pele, está transgredindo o segundo grande mandamento do Senhor: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mt 22.39). “O apóstolo Paulo afirma que, em Cristo, todos se tornaram um”, complementa, referindo-se ao texto de Gálatas 3.28. O racismo, explica Tiago dos Santos, é fruto de uma consciência dominadora e separatista, que tende a explorar e agir de forma egoísta e intolerante em relação ao próximo. “A Igreja combaterá o racismo sendo a verdadeira Igreja de Cristo, mas, também, envolvendo-se nas lutas da sociedade, para a luz de Deus ser revelada aos homens”, conclama. 

O teólogo Tiago Batista dos Santos explica que o racismo é fruto de uma consciência dominadora e separatista, que tende a explorar e agir de maneira egoísta e intolerante em relação ao próximo Foto: Arquivo pessoal

CRIME INAFIANÇÁVEL

Foto: Arquivo pessoal

No Brasil, o racismo é tipificado como crime há 31 anos, a partir da Lei 7.716/1989, assinada pelo então presidente José Sarney. Contudo, o advogado Daniel Teixeira de Assis (foto) deixa clara a diferença jurídica entre racismo e injúria racial – esta, prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal. A injúria racial, segundo ele, consiste em ofender a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. “Já o racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando a integralidade de uma raça”, alerta, exemplificando que a prática consistiria em impedir a entrada, em estabelecimento comercial, de todas as pessoas com determinado tom de pele, vedar o acesso delas às entradas sociais de edifícios e aos elevadores, ou negar-lhes emprego em empresa privada.

Ao contrário da injúria racial, cuja prescrição é de oito anos, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo 5º da Constituição Federal. “Grande parte dos processos são por injúria racial, e não por racismo”, afirma o advogado, advertindo que somente a lei não basta para acabar com esse preconceito. “Paralelamente, são necessárias ações afirmativas de reparação para os negros. A Constituição diz que todos devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades.”

A injúria racial pode vir a ser tipificada como crime de racismo. Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 1940) e a Lei de Crimes Raciais (Lei 7.716, de 1989), para endurecer o delito. Trata-se do PL 4.373/2020, o qual pretende que atitudes racistas, quando praticadas na forma de injúria, também sejam classificadas como imprescritíveis e inafiançáveis.


DESDE A ANTIGUIDADE

A relação entre os israelenses e os povos do Norte da África remonta a milênios. Portanto, existem diversas menções a negros na Bíblia. Confira alguns exemplos:

:: Não se sabe se, antes ou após a morte de Zípora, Moisés tomou para si uma mulher de Cuxe, nação africana localizada na região onde hoje está o Sudão. O casamento com uma estrangeira acendeu a ira de seus irmãos, Arão e Miriã (Nm 12.1).

:: Um escravo cuxita foi o mensageiro escolhido por Joabe para levar a Davi a notícia da morte de seu filho e adversário, Absalão (2 Sm 18.21).

:: A rainha de Sabá, país localizado provavelmente entre a Etiópia e o Iêmen, foi uma das mais ilustres visitas recebidas pelo rei Salomão (1 Rs 10.1-11).

:: Quando o profeta Jeremias foi lançado em um poço de lama, um etíope identificado como Ebede-Meleque foi responsável por salvar a vida do profeta (Jr 38.1-13).

(Fonte: Bíblia Sagrada)


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